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6 de dez. de 2011

Rivotril



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"De fato, o inconveniente das vendas cada vez mais expressivas de Rivotril relaciona-se com a lamentável sina consensual de que não podemos jamais sofrer, de que a vida é um grande parque de diversão onde há somente alegria, já que qualquer indício de insatisfação incide no passo de se buscar uma via que conduza diretamente ao prazer individual mediante os fatos, deixando em um plano secundário perspectivas pautadas na reflexão e superação advindas do próprio âmago do ser."

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Rivotril

Em termos técnicos, para além da marca de laboratório, clonazepam, componente químico utilizado para tratamento de fobia social, síndrome do pânico e ansiedade generalizada. Este é o conhecido Rivotril, medicamento de utilização controlada que ocupa cada vez mais espaço no cotidiano de pessoas comuns, tornando-se uma válvula de escape para a agitação e ansiedade que marcam nosso tempo. 
Lamentavelmente, é cada vez mais abusiva e descontrolada a utilização de medicamentos anti-depressivos, calmantes e relaxantes, o que ergue, além de uma questão de saúde pública, também uma problemática de ordem existencial, que clama para o delicado tema do modo como a sociedade reage diante de crises, perda de familiares por doenças como câncer, problemas em relacionamentos, trabalho (por seu excesso ou falta)... 
De forma assustadora, o ato de se recorrer aos medicamentos que driblam o sistema nervoso foge ao controle. Irresponsavelmente, amigos e familiares indicam uns aos outros o socorro nas pílulas para tratamento de questões, na maioria das vezes, banais. Até porque, no modelo econômico e social vigente, quaisquer sinais de conflitos interiores são vistos como grandes mazelas, de forma que aborrecimentos cotidianos, momentos de catarse emocional e falta de sono por algumas noites são violentamente derribados pelo efeito de drogas calmantes, elevando ao máximo a sensação de paz e tranquilidade. 
Responsabilizo por tal quadro, categoricamente, além dos usuários que decaem na ilusão do combate de momentos difíceis através de um escapismo medicamentoso, os médicos que transgridem sua ética profissional e receitam tais drogas sem real necessidade e de forma leviana, como se fossem analgésicos. 
De fato, o inconveniente das vendas cada vez mais expressivas de Rivotril relaciona-se com a lamentável sina consensual de que não podemos jamais sofrer, de que a vida é um grande parque de diversão onde há somente alegria, já que qualquer indício de insatisfação incide no passo de se buscar uma via que conduza diretamente ao prazer individual mediante os fatos, deixando em um plano secundário perspectivas pautadas na reflexão e superação advindas do próprio âmago do ser. 
Não importa o problema, não importa que seja banal, por ora ele recai na solução das pílulas. Basta uma discussão no trabalho, um dia de trânsito, um desentendimento com o marido ou esposa, uma prova, uma inquietação repentina... Aturdidos, nos levantamos de nossas vidas vazias, vamos à cozinha e, com uma faca, partimos o comprimido em duas ou quatro partes. Abrimos a torneira, enchemos um copo com água e o ingerimos segundo nossa própria prescrição – ou loucura – , com o intuito de que seu impacto derrube nosso corpo e cale nossa alma desassossegada. 
Maldita sociedade que não se permite superar seus próprios conflitos; irresponsáveis profissionais de saúde que não medem as consequências sobre seus pacientes; mesquinha indústria farmacêutica que aproveita do rentoso negócio da escravização da existência... 
Entre tantos culpados e coniventes com a vergonhosa popularização do uso indevido de medicamentos controlados , miseráveis são aqueles que hoje se tornaram vítimas da dependência, já que não conseguem se libertar das garras cada vez mais profundas da necessidade das sensações químicas desencadeadas em seus corpos e mentes. 
Miseráveis por terem dado um primeiro passo rumo ao traiçoeiro mundo da sujeição aos medicamentos; pobres por terem cedido aos anseios do mundo perfeito que todos lá fora esperam, mundo onde chorar é para os fracos e vivenciar crises é para os idiotas.

Escrito por Edward de A. Campanário Neto

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom seu texto, me lembrou um artigo http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/acervo.php?c=71412

Postei no face.