Páginas

2 de jan. de 2012

A guerra dos valetes no castelo de cartas

========================================================

"Em silêncio eu tudo observava. Devagar me ergui, tendo à minha volta o olhar sorrateiro da realidade. Os valetes também me observavam, com suas espadas embebidas no sangue dos reis que antes eram o governo de minha vida. No fundo, eu sabia que os valetes eram eu mesmo; a realidade, o amor que tinha abraçado naquela guerra que havia declarado. "

========================================================


A guerra dos valetes no castelo de cartas

Sinto aqui dentro do meu peito um aperto; voz embargada, coração vacilando e respiração ofegante. Num misto estranho circulam em meus humores líquidos de prazer e amargor, bailam de forma sinistra buscando espaço nos novos rumos e escolhas que constroem a vida. 
Reina a dúvida neste meu castelo de cartas onde valetes de copas digladiam com azes de espadas uma guerra desencadeada pelo sabor dos fatos e força das ideias. Foram os reis derrubados, seus tronos lançados ao fogo e os palácios varridos da história. As damas refugiaram-se, partindo num exílio cinzento em terras cujos nomes não se sabe sequer pronunciar.
Ao vento voam cartas, naipes e insígnias. Esvaneceu-se no ar a cortina de ilusão que a tudo tornava tão aceitável pela cegueira de respostas vazias; no baile dos sonhos a realidade escancarou as portas e incendiou os convidados que dançavam e conversavam sob as máscaras eternas de mentiras e mundos de suposta perfeição.
Em silêncio eu tudo observava. Devagar me ergui, tendo à minha volta o olhar sorrateiro da realidade. Os valetes também me observavam, com suas espadas embebidas no sangue dos reis que antes eram o governo de minha vida. No fundo, eu sabia que os valetes eram eu mesmo; a realidade, o amor que tinha abraçado naquela guerra que havia declarado. 
As cinzas, as chamas, o sangue e as perdas... consequências das intensas batalhas dentro do ser, nada mais que conflitos das mudanças que se agigantaram e tornaram-se uma grande guerra, com data de início, assim como qualquer outra deflagação bélica, sem ter um fim definido, ainda que desejado.
E como toda guerra, tal guerra criou-se nas batalhas, seguirá de batalhas e, se encerrando, se fará por meio de decisivas e importantes batalhas. Serão os valetes da realidade contra os azes que cercam o início e fim do baralho, as cartas e naipes com o desejo de serem ou apresentarem o início e fim de todas as coisas, uma plenitude que não passa de recalques baseados em falsas certezas e palavras absolutas.
Os valetes clamam pela mudança, que trouxe dor, que causou guerra, que resultou em liberdade; mas em cantos e recantos dos castelos de cartas espreitam sorrateiros os conspiradores, os defensores do antigo regime, os monarquistas que clamam por rei, um norte, um princípio absoluto para reinar inquestionável.
Mas sou feito de valetes, aquelas cartas que me dizem de razão sem perder as emoções que compõem a vida. Elas se posocionam nos filões do paço antes ocupado pelo rei para defenderem não um sentido pronto, mas aquilo inacabado, imperfeito e belo que tem um tom todo permeado de mistério e estranheza.
A batalha segue, o sangue é derramado nas tapeçarias, cabeças rolam sob o peso dos machados de toda razão, emoção e certezas. Grito exasperado para minhas tropas, enquanto vejo os azes avançarem na busca desesperada de sua supremacia no jogo.
De fato, não tenho medo que me dominem, que me subjuguem, pois isto tenho certeza que jamais serão capazes. Poderão ferir e fazer verter a dor do profundo da alma. Poderão até erguer a poeira dos escombros da ilusão, mas não conseguirão arrancar das mãos de meu valetes as copas, as taças do néctar da liberdade que uma vez experimentei para meu todo sempre.
Enquanto discorre a batalha, a guerra, olho para o fundo do antigo salão real e, num trono decadente e em pedaços, ri de todos nós o coringa, aquela carta que substitui todas as outras, que domina a tudo e a todos, que, no fim, prevalecerá sobre todo o baralho.
Não restarão reis, damas, azes, valetes, naipes ou sentidos diante do coringa. Ele dá suas risadas sombrias, revelando-se, pelo tarô, a carta da morte com aquela foice afiada e sorriso gélildo. Eu fito em seus olhos, faço uma reverência e, me agarrando à vida, continuo minha batalha, minha guerra, pois sei que somente poderá me tocar o coringa, o ceifador, quando o tempo assim o permitir. 
E assim segue a guerra dos valetes no castelos de cartas...

Escrito por Edward de A. Campanário Neto

Nenhum comentário: