Deram o sinal e o ônibus não parou. Você passou do ponto onde ia descer. Qual foi sua reação?
Isso pode ser simples, mas traz consigo reflexões profundas sobre a vida
"Chegando ao meu destino, levantei e, dado o sinal para que o ônibus parasse, por motivos que desconheço, o motorista ultrapassou o ponto. Assim, eu e mais dois passageiros teríamos que fazer parte de nosso percurso a pé. São coisas que acontecem, falhas como as que eu e todos mais cometemos todos os dias, cada qual à sua própria realidade... nada que se mostrasse como algo que me arrancasse de meu estado normal de ver ou sentir a vida. Mas percebo que não são todos que pensam ou agem assim e, naquele momento, foi algo que veio à tona."
Aquele parecia ser um dia como outro qualquer. Eu havia me levantado em meu tão comum silêncio matutino, momento em que fico digerindo os sonhos que lembrei ou esqueci e que velo minha palavras em pensamentos sobre a vida, os desafios, os dilemas, as tarefas cotidianas e, acima de tudo, sobre a Providência que careço tanto de buscar e me sujeitar à sua graça.
Lá fora caía uma chuva fina e serena que cobria os céus como um manto cinza em forma de bruma. O vento a espalhava pelo firmamento de maneira poética e também incômoda, dada a necessidade de sair para o trabalho e ter de enfrentá-la em uma guerra perdida. Então, segui meu rumo e tomei ônibus... Até aí nada de diferente do comum, das manifestações da estação, da repetição de meus dias e também das novidades trazidas por aromas, olhares, sorrisos ou aquele repentino desejo de chorar manifestado em momentos de gratidão a Deus.
Chegando ao meu destino, levantei e, dado o sinal para que o ônibus parasse, por motivos que desconheço, o motorista ultrapassou o ponto. Assim, eu e mais dois passageiros teríamos que fazer parte de nosso percurso a pé. São coisas que acontecem, falhas como as que eu e todos mais cometemos todos os dias, cada qual à sua própria realidade... nada que se mostrasse como algo que me arrancasse de meu estado normal de ver ou sentir a vida. Mas percebo que não são todos que pensam ou agem assim e, naquele momento, foi algo que veio à tona.
Enquanto o ônibus seguia seu rumo, passando do ponto onde desceríamos, em um acesso de fúria, um dos passageiros foi tomado de uma revolta repentina, cuspindo palavras de ofensas e precações contra o motorista, além de gestos dotados de tão grande desejo de exaltar as motivações para tal. Era uma razão coberta de uma visão confusa sobre os compromissos, a rotina de um mundo próprio que desejava que os mundos à sua volta orbitassem em torno de si em uma perfeição estranha. E por não atender a tal perfeição exatamente por não haver perfeição, um trabalhador em um momento de deslize foi desprezado e humilhado sem qualquer respeito à sua posição no mundo, que vai muito além de sua configuração profissional, já que é parte da existência como ser humano, imagem e semelhança de Deus.
Tudo isso me levou a pensar profundamente, alcancei um deleite de reflexão que intensificou aquele meu silêncio da manhã. Em meu ser pairavam tantas perguntas e, ao mesmo tempo, um sem número de respostas que me apontavam o vazio que existe nesta humanidade que se gaba de estar tão farta e cheia de si, mas tão distante da proposta do Criador. Foram momentos onde a certeza de que as dúvidas reinam de forma macabra em meio ao mundo tornaram-se claras como os dias de sol. Digo isto por perceber que as ações e reações estão desmedidas e postas em tempos e espaços tão incondizentes com o que verdadeiramente importa...
Em meio à confusão que impera sobre as almas inquietas, alimentadas de consumo e sonhos de prazeres imediatistas, restam somente retalhos do que era para ser um tecido uno e ao mesmo plural. As pessoas vivem, consomem e se consomem em seus muitos pedaços, frangalhos daquilo que Deus fez com tanto zelo e inteireza. E daí advêm tanta dor, amores incompreendidos, amores doentios, famílias destruídas, silêncio diante daquilo com que se é necessário gritar, gritos quando se é necessário calar... um marasmo de existências que se chocam provocando atritos que desequilibram a ordem essencial do ser, culminando na história que se repete e se repete de um mundo que caminha cada mais para o vale da dor e para o abismo da perdição.
E diante de tudo isto eu sempre acabo na pessoa de Jesus. Como ele foi sensato em chamar atenção para as coisas pequenas, os fatos cotidianos, as reações mais humanas, de forma a nos mostrar a viabilidade de um sentido para vida. Seu sentido sempre tão nítido, tão real e pautado em pequenos e graduais processos capazes de mudarem o ser, de mudarem o todo. Ele, mais do que ninguém, soube colocar as reações em seu devido tempo e lugar, revelando seu princípio de equilíbrio e autonomia, de plenitude.
Tão diferente de nós, Jesus não foi capaz de gritar contra os miseráveis, contra os feridos, mas sim tomar de chicotes e expulsar do templo aqueles que viviam oprimindo seus semelhantes e usando de ganância na casa de Deus. Com a pecadora adúltera que seria apedrejada ele não proferiu acusação, mas desafiou a todos seus perseguidores a apedrejarem se não fossem também pecadores. E enquanto via a multidão enfurecida a sair, de forma tão simples, ele desenhava no chão, de cabeça baixa.
Jesus, em metáforas, dizia que sua missão não era a de quebrar a cana envergada ou apagar o pavio que fumegava. As profecias já descritas sobre sua pregação para o mundo era a visão de uma existência marcada pelo equilíbrio, de forma que todos os montes se tornassem planos e todos os vales e abismos se levantassem, algo tão distante do mundo que vivemos, um verdadeiro abismo onde milhões vivem sob os pés de uns poucos que se elevam em sua busca e realização material proporcionada pelas distorções de uma economia louca que cede o nada para quase todos e o quase tudo para esta parcela que absurdamente se considera agraciada.
E enquanto nos calamos diante das injustiças e desigualdades, enchemos nossos pulmões para gritar e oprimir nossos iguais, seres humanos que possuem vidas e problemas até mais complexos que os nossos próprios. Então criamos nosso mundo justiça onde nossa dor é maior, nossos dilemas são mais dramáticos, nossas certezas mais verdadeiras, nossas dúvidas mais justicáveis, as imperfeições dos outros sempre inaceitáveis e, por fim, nossas falhas e defeitos sempre explicáveis e dignos de compreensão.
A existência segue seu rumo e nós sempre passando do ponto de forma tão estranha. Nunca pensando na dor alheia, nunca imaginando o que se passou na cabeça do motorista, muito menos pensando em como foi difícil e doloroso engolir as palavras de ofensas pelo motivo de termos somente passado do ponto e acrescentado em nossa caminhada nada mais que alguns poucos metros. E assim vamos nos enchendo de nós. Na expectativa do ponto onde iríamos descer vamos pouco a pouco nos afastando do verdadeiro ponto onde deveríamos destinar nossas vidas, o ponto de Deus, onde nos aguarda sempre a simplicidade daquele mesmo Jesus.
Sim, o mesmo Jesus que nos orienta a abandonar nosso sentido próprio e terreno de existência para trilhar um novo e vivo caminho pautado não no imediatismo, mas em uma proposta aparentemente absurda, repleta de eternidade em si:
" Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo e tirar-te a vestimenta, larga-lhe também a capa; e, se qualquer obrigar a andar um milha, vai com ele duas." Mt. 5. 39-41
Se por acaso o motorista se distrair e passar do ponto que você vai descer, te obrigando a andar um pouco mais, lembre-se destas palavras. Não importará a distância percorrida, mas sim a distância entre o seu coração e a proposta Daquele que se dispôs percorrer todas as distâncias ao teu lado, não te acusando pelas vezes que você esteve no banco do motorista e acabou passando do ponto, deixando Ele e muitos outros longe de seus lugares ideais.
Pense em Deus não como um ser distante, mas como aquele que pega o ônibus com você todos dias...
Pense em Deus não como um ser distante, mas como aquele que pega o ônibus com você todos dias...
Escrito por Edward de A. Campanário Neto
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