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4 de dez. de 2010

Eu descobri que tenho asas - 2ª parte



Poder voar, ter asas... ainda que alcançar os céus seja um deleite, não é o suficiente para se alcançar o sentido da vida

2ª parte do conto Eu descobri que tenho asas (clique no link e leia a 1ª parte)

"Foi então que eu fechei meus olhos e deixei fluir uma prece sorrateira de meu coração. Pedia perdão a Deus por desperdiçar a vida que tinha me concedido e por ter sido tão covarde em viver... Abri meus braços e, no desespero ao mesmo tempo calado e em um grito derradeiro, me lancei ao ar. Senti o amargo gosto da morte, o vento me forçando como uma barreira que aos poucos cedia para o fim de tudo, para o chão que selaria meu destino vazio... 
Enquanto aguardava o beijo cinza daquela que encomendaria minha alma ao mundo dos mortos, além do medo, senti uma forte dor em minhas costas. Pensei que fosse o fim, meus pulmões explodindo, mas era algo de dentro para fora. Brotaram de mim coisas pontudas e sedosas... elas se abriram em um gesto de força, me fazendo planar. Eu não havia morrido, eu não estou morta, eu descobri que tenho asas... "

Ao atirar-me para a morte de uma vida sem sentido, alcancei um renascimento que brotou de dentro de meu ser. Minhas mãos suavam, meus olhos derramavam lágrimas, perdi o controle de meu corpo, meu domínio sobre o que era ou sentia. A única certeza que havia eram minhas asas, que batiam freneticamente em movimentos de beleza e sensibilidade, me salvando de mim mesma, me salvando do abismo onde sempre vivi...
Agora eu voava como um pássaro que acabara de descobrir a liberdade. Não, não tive dúvidas o receio sobre porquê de minhas asas, como elas brotaram ou quem as fez brotar. Eu queria somente correr junto do vento, beijar sua face e, aos poucos, viver a vida de uma forma intensa, valorizando os momentos especiais, as pessoas à minha volta e, acima de tudo, meu desejo e meu prazer em deixar o chão nas noites frescas, estreladas ou não, com belos luares ou céus cinzentos. Tudo pelo prazer de voar, de buscar meus sonhos, conversar comigo mesma e saber quem eu era, o que eu realmente queria e as relevâncias e implicações de cada uma de minhas escolhas.
E assim seguia-se minha vida com asas e seus voos. Não quis contar a ninguém por medo da ambição, do desejo das pessoas por fama, dinheiro, pelo exótico que não possuíam. Por isso eu saía sempre sozinha,  batia minhas asas em rumo a lugares retirados e belos onde eu me encontrava somente comigo, com meu verdadeiro eu, sem as represálias, sem as condutas sociais, sem os falsos valores... e aí eu percebi um novo sentido para minha existência, um sentido para a existência de quando eu somente caminhava e um outro, um sentido novo até para minha nova vida com asas.
O que me fez chegar a tais sentidos foi o tempo. Sim, aquele sábio e imponente componente do tudo que sempre traz respostas e novas perguntas. Ele foi o responsável para que eu me enxergasse em um sentido completo, mas, por fim, me fez olhar à volta com mais intensidade, vendo que me faltava muita coisa. Não, não vi faltas fúteis como dinheiro, beleza, glamour. Notei que ter asas e voar  era uma dádiva, mas que não era o ideal voar só. Percebi que mesmo com asas, o verdadeiro condutor de minhas escolhas era meu coração, que estando solitário, cedo ou tarde, na terra ou no céu, me induziria e conduziria novamente aos mesmo desejos, aos impulsos, aos antigos medos. 
Eu confesso que me sentia completamente feliz, realizada, mas, ao fundo, meu próprio coração me dizia que somente ter asas não era o suficiente, mas que era preciso ter alguém para compartilhar o que eu tivesse, independentemente de serem asas, trapos, tesouros... era preciso ser para um objetivo maior, para um outro alguém além de mim mesma. 
Voar me levou às alturas da existência. De lá pude ver o mundo de forma mais clara, vi que havia um sentido para a vida, para a existência... E este sentido estava não no indivíduo em si, mas em seu ato de existir no outro, com o outro, pelo outro. Vislumbrando isto do alto, vi o quanto era latente, o quanto se era pulsante, belo, poético o diluir de identidades em uma proposta muito mais ampla de ser, de ser mais, de verdadeiramente ser...
Tudo isso me despertou a consciência de que asas eram somente um ponto de partida, uma chance para a minha vida encontrar seu sentido no mundo. Ao fim, o sentido era mais que voar, rasgar os céus, era, verdadeiramente, o reconhecimento de onde voei, por onde voo agora e por onde voarei. Tal reconhecimento é impossível de se almejar sozinho, em si mesmo, fato que me leva a voar com mais intensidade, a iniciar uma busca pelo ser com que quero dividir a minha vida, o alado que me dará infinitos motivos para eu ser eu mesma, para eu poder voar, voar ainda mais alto...

Escrito por Edward de A. Campanário Neto

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