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29 de jan. de 2011

Traídos de nós mesmos

Faz parte de nós: nos traímos o tempo todo. Pelas traições de nosso ser degradamos nossa própria felicidade

"Traição. Esta é uma palavra torpe e pesada, marca de um mundo confuso como o que nos cerca, mas, excedendo-se ao nível de nosso próprio mundo, ela não deixa de ser tão lastimável, pois mostra-se muito mais comum, instintiva. Somos traidores de nossos ideais, nossos sonhos, nossa felicidade. Somos vis desconstrutores das pedras que ladrilham a estrada que conduz à plenitude do ser."

É impressionante a complexidade humana e a infinidade de reações que manifestamos diante da vida. Creio que qualquer coisa que venha a ser dita ou escrita sobre tal temática será sempre faltosa em essência ou limitada por demais. Nossa mente é um grande e profundo oceano de mistérios, sendo que suas águas são agitadas pelos ventos das emoções, marés dos hormônios e processos biológicos e, por fim, ambos são influenciados pela lua dos fatos, benesses e mazelas da existências...
Navegando mansamente sobre as águas de meu próprio oceano, percebo o quanto nossa natureza está pautada na imperfeição e incompletude. Isso se manifesta de forma clara em meio às nossas incoerências, razões, emoções e, acima de tudo, em nossas escolhas. Chego à conclusão que o domínio sobre o ser é algo extremamente intrigante e desafiador, pois mesmo sob o foco das razões ou emoções somos, em todo tempo, traídos de nós mesmos.
Traição. Esta é uma palavra torpe e pesada, marca de um mundo confuso como o que nos cerca, mas, excedendo-se ao nível de nosso próprio mundo, ela não deixa de ser tão lastimável, pois mostra-se muito mais comum, instintiva. Somos traidores de nossos ideais, nossos sonhos, nossa felicidade. Somos vis desconstrutores das pedras que ladrilham a estrada que conduz à plenitude do ser.
O modo como nos traímos é diverso, uma verdadeira besta de mil faces e de infinitas manifestações. A traição ocorre quando chegamos a um patamar misterioso e confuso em que nos vemos tomando atitudes e dando a vazão a impulsos que não fazem parte do que somos e do que almejamos ser. Quando percebemos, estamos em lugares que nunca nos foram agradáveis ou sadios, nos entregamos a pessoas que nos ferem e destroem, dizemos coisas de que temos arrependimento repentino, sentimos e vivemos fantasias sem origem, defendemos razões absurdas e, por fim, recalcamos os vestígios daquilo que há eterno em cada um de nós.
E a traição é extremamente repentina. Basta que eu diga para você não pensar em um abacaxi e imediatamente pensará nele. Uma prova evidente de como o mundo externo esmurra as portas de nossas almas e cria o abrir e fechar de muitas outras portas que existem na morada de nossa mais profunda essência. Se um abacaxi tem o poder de infringir o derramar de uma tempestade de pensamentos, imagine os abalos sísmicos provocados pelas dores, pelos amores, ódios, desejos de justiça, anseios de posse, sonhos, medos... A traição de nós por nós mesmos espreita a todo tempo, esperando seus momentos de levante para engessar nossas vidas em suas respostas tão vazias e reações tão torpes e nuas de verdades essenciais - digo aqui verdades sobre a vida: renúncia, cumplicidade, doação, perdão, amor fraterno.
Mas de onde viria exatamente a traição do ser? Por que e como se dão os processos que esmagam razão e emoção? Creio que estas respostas não existem, motivo que nos impulsiona ao menos a questionarmos o ir e vir dos momentos onde respostas e reações brotam lançando brumas sobre o que consideramos verdadeiro e relevante. Penso que se a humanidade não permitisse que suas traições se elevassem ao nível do externo, partindo do seu eu para atitudes concretas, haveria muito menos sofrimento e um sobejar visível de caminhos de satisfação.    
Analisando a traição do ser, imagino os relacionamentos que tiveram seu fim devido ao estopim de um ou  outro por não ver em seu par o que antes era contemplado pelas razões de uma emoção repentina ou desejo evasivo por um outro alguém;  penso no rapaz trabalhador de vida pacata que teve um acesso de fúria e apertou o gatilho de uma arma, tirando uma vida; me pergunto sobre o pai que esquece seu bebê no banco traseiro do carro e o deixa morrer por negligência; reflito sobre a mulher que de nada que tem falta mas estende suas mãos para furtar uma peça de roupa de pouco valor. 
Tais fatos, argumentos, deduções e dúvidas não estão postos como juízos ou certezas, mas sim com apontamentos para arrazoarmos e sentirmos sobre a traição do ser, o vulto traidor de nós mesmos que assombra nossa alma e embaça nossa jornada às saídas da vida. 
Estas palavras não são para trazer culpa ou um temor repentino contra si mesmo, mas sim um convite à verdade de que deve haver uma cautela sobre nossos passos no delinear da vida. O objetivo é trazer à tona o conceito de que respostas imediatas e repentinas podem ser manifestações do oculto instinto traidor que nos compõe. 
O domínio sobre a traição de nós mesmos se dá como em toda traição: por um renovar de confiança ou superação do elo rompido. Neste sentido, para romper ou confiar, antes temos que saber o que verdadeiramente somos e o que queremos, tudo sob o foco das verdades fundamentais, os vestígios de nossa semelhança com o Criador, coisas que não entendemos ao todo, mas que somos capazes de almejar e até mesmo alcançar. Sim, os vestígios do Tudo! Amor, perdão, saudades, generosidade, humildade, armas pacíficas e eternas contra o instinto traidor da vida, a traição de nós por nós mesmos.

Escrito por Edward de A. Campanário Neto

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