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25 de jan. de 2011

Voando de vassoura

O mundo se faz e desfaz diante da inocência e espontaneidade das crianças. Suas respostas são uma riqueza em meio à pobreza existencial de nossos tempos


"Finalmente se apresentava a possibilidade do início do fim de um dia tão corrido e atribulado. Ledo engano, claro. No meio do caminho ainda tivemos mais um momento de espera. Obras de manutenção na rodovia Rio-Santos ainda atrasariam nosso percurso por mais vinte minutos. E, como sempre, nos restou a distração de nós por nós mesmos e a potencialidade de acontecimentos que vêm e vão dentro dos coletivos de transporte.
Sendo assim, provocando a descontração, virei-me para minha sobrinha e soltei uma das muitas graças que costumamos usar entre amigos e alguns familiares: - Está vendo, minha filha? Se a sua vassoura estivesse aqui, poderíamos voltar voando. -  Terminando de falar fui tomado da alegria que sempre manifesto diante destas besteira corriqueiras que quebram a seriedade do dia-a-dia. E acharia ainda mais graça diante da resposta e reação da criança."
- Meu Deus! Como está quente hoje! - Esta era a expressão que exasperava de meu cansaço. O calor do dia, somado à agitação comum da rotina, havia deixado marcas de irritabilidade e até mesmo um pouco de intolerância comigo mesmo.
Depois de um desconfortável imprevisto causado pelo egoísmo que se mostra sempre tão latente no cotidiano de certos colegas de trabalho, fui buscar minha sobrinha além do horário comum, para então irmos para casa. Antes disso tínhamos ainda que fazer compras. Eu não havia sequer feito a lista e o mercado estava  completamente cheio. Era o repertório perfeito para justificar bravatas e alimentar aquele desejo repentino de reclamar um pouco da vida, sendo que eu já tinha tido meu momento de ceder à fúria repentina...
As compras foram até bastante tranquilas. A cara emburrada e o cansaço logo foram driblados pelos risos e brincadeiras em meio aos corredores e prateleiras. Mais uma vez a oportunidade de estar diante de uma criança veio me resgatar do mundo que me castra como humano e me fere todos dias. Como sempre, a doçura e a simplicidade de minha pequena preciosidade de dois anos de idade desataram as cordas do movimento estranho de meu mundo e também do movimento de minhas reações também estranhas diante de tal mundo.
Por vezes eu empurrava o carrinho de compras e o pedacinho de gente que nele estava soltava pequenos grunhidos de emoção, como se estivesse em uma montanha-russa ou algo semelhante. Olhava, sorria, pedia, falava com as pessoas que iam e vinham... E eu adentrei naquele mundo tão fantástico. Dava voltas e a surpreendia com cócegas, fingia que sair correndo e logo voltava, respondia suas perguntas tão confusas e, acima de tudo, ria e me curava de minhas futilidades.
Saindo mercado me esperavam mais pedaços do mundo real. Já passava das 19:45 e teríamos ainda que tomar dois ônibus para chegarmos em casa. Felizmente, assim que atravessamos a rua, se aproximava um, que, correndo e comemorando, conseguimos alcançar com júbilo e ainda sentar no banco alto - sentar nos bancos mais altos, aqueles que ficam na parte traseira, era sempre o júbilo de minha sobrinha. Toda vez que entramos num ônibus ela pergunta se vamos sentar em algum deles, mantendo-se atenta se os mesmos irão se desocupar.
E passada a primeira etapa do retorno, paramos no ponto de ônibus de costume e nos pusemos a esperar. Este momento não teria nada do brilho heroico da chegada do primeiro ônibus. Esperamos cerca de quarenta e cinco minutos para, definitivamente, tomarmos nosso rumo em direção ao descanso e aconchego de nossa simples casa. Mais uma vez minha sobrinha trouxe o alívio para a espera, me convidando para brincar de esconder o rosto na pilastra do abrigo...
Primeiro passou um ônibus completamente lotado, que não nos arriscamos a embarcar, afinal, para quem tanto havia esperado não fazia diferença adentrar no estado de "esperado e 1/2". Assim, logo em seguida, surgiu um novo ônibus, que estava nas condições razoáveis para seguirmos. Não diríamos perfeito pois os bancos altos estavam ocupados...
Finalmente se apresentava a possibilidade do início do fim de um dia tão corrido e atribulado. Ledo engano, claro. No meio do caminho ainda tivemos mais um momento de espera. Obras de manutenção na rodovia Rio-Santos ainda atrasariam nosso percurso por mais vinte minutos. E, como sempre, nos restou a distração de nós por nós mesmos e a potencialidade de acontecimentos que vêm e vão dentro dos coletivos de transporte.
Sendo assim, provocando a descontração, virei-me para minha sobrinha e soltei uma das muitas graças que costumamos usar entre amigos e alguns familiares: - Está vendo, minha filha? Se a sua vassoura estivesse aqui, poderíamos voltar voando. -  Terminando de falar fui tomado da alegria que sempre manifesto diante destas besteira corriqueiras que quebram a seriedade do dia-a-dia. E acharia ainda mais graça diante da resposta e reação da criança.
Ela, dotada de uma propriedade e convicção, tomou o ar em seus pequenos pulmões e, como se falasse a coisa mais importante do mundo, disse: - Tio! Eu esqueci a minha vassoura lá na casa da minha madrinha. Ela está lá... - Ao dizer ela olhou para a janela do ônibus, apontando a localidade da suposta casa.
Uma resposta que não tem nada demais... A esta altura você pode estar se perguntando o porquê de haver alguém que ache graça nisto. Realmente uma resposta até comum, mas tão exótica diante da realidade que vivenciamos como família. Somos protestantes e não existe nenhuma madrinha, já que ela não foi batizada, pois isso não faz parte dos ritos de nossos costumes em relação às crianças.
Mediante a este cenário, o que restaria além de um vislumbre tão grande, dada uma manifestação tão espontânea e temperada com dúvidas pitorescas? De onde surgiu esta madrinha e a relação com a vassoura, que teria um sentido mais claro se estivesse na "vizinha", "na vovó Selma", na "loja da minha mãe", "lá no Camorim"? Simplesmente eu não soube...
E assim prosseguiu-se meu encantamento com a vassoura e a madrinha, sendo que ela insistia em dar seguimento à conversa: - Tio! Eu vou lá buscar a vassoura pra você! - Neste momento o ônibus enfim seguia o trajeto, com a liberação da pista. Virei então e lhe disse: - Não precisa mais não. Já vamos chegar logo, logo. E também é perigoso voar de vassoura de noite. Está muito escuro e a gente pode cair lá de cima e se machucar todo.
Se antes eu havia me inquietado com o rumo da conversa, agora era a vez dela manifestar seus próprios espantamentos: - Mas tio!? A gente pode voar de vassoura? - Apontando para a janela, continuo: Lá fora? - E então, abaixando meu rosto e me aproximando daquela face de ternura e sede pela descoberta do mundo, lhe sussurrei palavras: - Lá fora não, mas, aqui dentro, sim! - Disse tocando sua cabeça. - No pensamento a gente pode sim!
E ela olhou para a janela uma última vez e retornou para mim: - Lá fora não? Aqui pode? - E tocava sua testa enquanto perguntava. Então novamente respondi: - Aí pode, sim! - Por fim, ela piscou como se estivesse pensando a respeito e, acomodando as respostas dentro de seu mundo colorido de pensamentos, olhou o ambiente em volta e sossegou.
Chegamos ao nosso destino, demos o sinal, nos despedimos com um aceno para o motorista e o trocador e, finalmente, descemos. Não dava para subir a ladeira de vassoura, mas tudo o que tinha se passado no mundo da simplicidade de certas ideias tinha sido, sim, como voar em uma vassoura esquecida na casa da madrinha.

Escrito por Edward de A. Campanário Neto

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