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10 de nov. de 2010

A Bruxa

Este conto traz uma reflexão profunda e necessária sobre os terrores de tantas mulheres inocentes queimadas vivas sob insanas acusações de bruxaria

"A mulher, vendo as chamas lhe subirem pelas pernas, em um último lampejo de sua consciência transtornada pela dor, fitou os olhos de seus acusadores e da multidão. Ouvia suas vozes como se estivessem distantes, vozes estas que enchiam-se de riso e prazer por sua dor, que cuspiam palavras de fúrias e ofensas. Ao cheiro da fumaça que já começava a paralisar sua respiração só lhe restou a percepção de uma última frase: Queime no inferno, bruxa."


A multidão raivosa e agitada seguia num frenesi de horrores pelas ruas enlameadas. Como em uma grande procissão  seguiam um atrás do outro, desde mulheres com suas crianças de colo a adolescentes, jovens, adultos e idosos. Ali se espremiam desde os mais ricos aos mais pobres, todos com o mesmo propósito. Seguiam a comitiva de padres e freiras que conduziam a ré. A curiosidade, o prazer, a crueldade e a fé se misturavam em uma só massa viscosa e sombria, fazendo com que cada um estivesse sedento pelo julgamento de uma mulher, o julgamento de uma bruxa.
Junto do clero, com a cabeça baixa e as mãos atadas com fortes nós de uma grossa corda, a mulher seguia vacilante seu destino cruel. Seus pés estavam feridos pela umidade do tormento do chão frio da prisão onde estivera. Seu rosto ardia em febre devido às inflamações em suas costas, provocadas por dezenas de chicotadas que a levaram ao extremo desespero da dor, fazendo com que confessasse algo que nunca havia cometido.
Chegando à praça onde seria julgada, a mulher subiu ao palanque previamente montado para sua condenação. Lá estavam as cadeiras dos padres, de seus acusadores e das autoridades locais, que acompanhariam todo o processo. Seu desespero aflorou quando viu um enorme homem portando um tenebroso capuz preto, que cobria seu rosto. Ele estava postado diante de um alto monte de lenha e palha, com uma tocha em suas.
Conduziram-na a uma cadeira e começaram a acusá-la. O assistente do bispo lia cada uma das infrações, citando a relação da ré com as forças malignas para destruir casamentos, causar tempestades, gerar esterelidade, tornar terras inférteis e enlouquecer pessoas pelo poder atormentador do demônio.
Tentando lutar contra os ventos da morte que lhe sopravam em forma de acusações, a mulher começou a gritar e implorar socorro. Sua fome, somada à febre e à tensão do momento, faziam com que seus gritos por misericórdia ecoassem como grunhidos estranhos e incomuns, o que fazia a multidão apavorar-se e seus algozes jubilarem pela comprovação de que realmente queimariam uma bruxa.
Vejam, ela invoca o poder de Belzebú, o seu senhor. Ela é uma bruxa! Mesmo diante do juízo dos santos homens de Deus evoca seus sortilégios e artes infernais! - Disse o bispo, levantando-se e apontando para a mulher. - Ela deve ser queimada e arder com Satanás no fogo do inferno! Amarrem-na ao mastro e dê a ela o castigo por aliar-se ao inimigo de Nosso Senhor!
O algoz, arrastando a mulher, que relutava em prol de sua própria vida, a amarrou no mastro e, tomando novamente da tocha acesa que possuía, ateou fogo à madeira e palha, deixando imediatamente o local, já que as chamas se espalhavam de forma tão rápida e furtiva.
A mulher, vendo as chamas lhe subirem pelas pernas, em um último lampejo de sua consciência transtornada pela dor, fitou os olhos de seus acusadores e da multidão. Ouvia suas vozes como se estivessem distantes, vozes estas que enchiam-se de riso e prazer por sua dor, que cuspiam palavras de fúrias e ofensas. Ao cheiro da fumaça que já começava a paralisar sua respiração só lhe restou a percepção de uma última frase: Queime no inferno, bruxa. Mas ainda que ouvisse as ofensas e sofresse a dor, erguendo a cabeça, ela viu a Deus, que chamava por seu nome...
E assim foi. Da mulher só sobraram cinzas e pedaços de ossos carbonizados. A multidão aplaudia e, aos poucos, ia se retirando, voltando às suas vidas dominadas pelo fanatismo e crença em um Deus vingativo e perseguidor.
Aquela mulher, julgada como bruxa, era só uma pobre mulher. Mulher sem nome, sem marido e sem filhos. Sua aparência era grotesca por sofrer de uma doença que havia deformado seu rosto. Seu semblante era sombrio e vazio devido à fome que sentia sempre. Suas roupas eram rotas devido à pobreza. O gato preto que vivia em sua casa, apontado como a encarnação do demônio, era sua única companhia, a companhia de uma pobre mulher abandonada e sozinha.
A única coisa que conhecia era o domínio de ervas curativas. Ela foi uma pobre e boa mulher, que percorria os campos e bosques à procura de plantas e medicamentos para abrandar o sofrimentos de muitos outros tão miseráveis e infelizes como ela. Ninguém a exergou desta forma, ninguém a viu como um ser humano. Antes, preferiram atenuar as razões de seus problemas e de suas vidas sobre um inocente, sobre alguém que deveria arcar com todas as responsabilidades. Foi muito mais fácil e conveniente acusar aquela mulher, aquela tão pobre mulher!

Escrito por Edward de A. Campanário Neto

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