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17 de out. de 2010

O buraco é mais embaixo...



Superados os dias de aflição dos 33 mineiros, resta um aprendizado para o mundo e uma reflexão sobre tragédias

Depois de 69 dias de intensa apreensão e acompanhamento das operações de resgate dos 33 mineiros chilenos soterrados a 700 metros de profundidade em uma mina de extração de cobre, resta uma sensação de alívio e gratidão não só para suas famílias, mas para todos nós, que desejávamos que o acidente, com tendência a terminar em uma tragédia, tivesse um final feliz. Agora os mineiros comemoram e alguns se preparam, inclusive, para retornar ao trabalho desde já, revelando o sinal de otimismo e equilíbrio emocional do grupo, que de forma quase milagrosa não sucumbiu ao desespero.



Tais fatos não são novidade para ninguém, já que a mídia nacional e internacional fez uma cobertura excepcional do caso, dando detalhes precisos de cada etapa da operação. Porém, se lançarmos olhares mais atentos, ainda há reflexões profundas a serem feitas em torno da situação. Devemos nos focar em suas causas e possíveis consequências e a lógica que seguem as tragédia mundo afora. Tal exercício trará à tona muitas outras questões que se fazem implícitas neste contexto, atingindo relações econômicas, relações trabalhistas e repercussões na indústria mundial de mineração.
O Chile tem sua economia firmada em grande parte na exportação de commodities, sendo que a mineração de cobre representa um terço de suas receitas. Historicamente o governo do país, liderado pela aliança de esquerda Concertacion durante 20 anos, reverteu as altas somas das exportações do cobre para transformar o país no mais desenvolvido da América Latina. Agora, dado desabamento da mina que aprisionou 33 trabalhadores, já se revela no horizonte uma reconfiguração da indústria de mineração por todo mundo, trazendo benefícios e atrasos.

Positivamente, o acidente foi exemplo de superação e inovação nos resgates em situações semelhantes, já que desabamentos de minas são tão antigos quanto a humanidade, o que pode melhorar muito as perspectivas de mineiros que trabalham em perfurações profundas. A tecnologia lá empregada foi um esforço coletivo e em alta velocidade para tratar da relevância da vida dos mineiros e do conforto de suas famílias, fato que desencadeou no processo de superação da previsão inicial para o resgate, antes programada para dezembro.

Além disso, há também possíveis atrasos e fatores negativos advindos do desastre no Chile. O primeiro deles, e mais provável, será uma alta imediata nos preços do cobre, já que seguradoras do ramo de mineração irão recompor suas carteiras de seguro a esta atividade, o que pode culminar em uma desaceleração dos investimentos de mineração a curto prazo. A partir daí, surge um cenário ainda mais perigoso, que diz respeito à debandada de mineradoras e seus investimentos para países onde as leis de proteção aos trabalhadores são menos rígidas. A China e alguns países africanos, por exemplo, seriam destinos prontos a receberam as altas somas do setor ao custo do risco exacerbado sobre a vida de seus cidadãos.

Por mais incômoda que seja esta análise, fica óbvio que em tragédias, acidentes, atentados terroristas e até mesmo catástrofes ambientais, muitos grupos empresariais se organizam e se reorganizam para obterem o máximo de lucro e benefícios possíveis. É fato que as seguradoras chilenas subirão seus preços extravasando os perigos reais, criando medos além de tudo que já foi sofrido, mas não por estarem preocupadas com os trabalhadores, mas pela ânsia de aumentarem sua carteira.

Se a partir deste acidente o Chile apertar ainda a mais as medidas de segurança e equipamentos a serem adotados pelas mineradoras, se verá, gradualmente, um movimento de realocação de atuação das mesmas para países pobres e reféns de qualquer investidor que ofereça uma perspectiva, ainda que falsa, de desenvolvimento. Isso é muito em claro em diversos ramos da cadeia produtiva mundial. As empresas travestem-se entre santas e pecadoras de acordo com a lei que rege os países onde atuam. Por isso digo que, quando se trata de questões como a dos mineiros chilenos, o buraco é muito mais embaixo.

Veja alguns exemplos de como as empresas mudam seus discursos e dançam conforme a música, sendo que desejam que elas mesmas definam o ritmo:


- Nike: ostenta uma marca famosa com produtos caros, mas poucos sabem que seus tênis são feitos em diversas partes do mundo por empresas terceirizadas e por mãos quase escravas. Seu mérito é somente costurar etiquetas;


- Sheel: a empresa do ramo de petróleo e derivados tem uma política de preservação do meio ambiente no Brasil, mas na Nigéria, país africano pobre e com governo fraco, polui vilarejos inteiros com resíduos de petróleo, condenando inúmeras crianças e recém-nascidos à morte por intoxicação vinda de águas contaminadas;


- Matel: a empresa que distribui a Barbie tem um programa social no Brasil, mas não revela que as roupas da boneca são costuradas por crianças que trabalham cerca de 12 horas por dia na Indonésia. Há alguns anos houve até casos de incêndios nestas "cooperativas de costura", onde dezenas de mulheres morreram queimadas por falta de segurança.

A luta dos 33 mineiros do Chile nos deixa um alerta quanto à atuação das empresas e seus métodos, coisas que geralmente não pensamos ou não somos levados a pensar pela mídia que conduz a distribuição de informações. O Chile é um país democrático e firmado em princípios sólidos de governos trabalhistas, mas pelo mundo afora as coisas são diferentes.

Por mais traumático que pareça, o que ocorreu no Chile nos últimos meses acontece no mundo o tempo todo. A diferença é que lá ninguém ouve ou socorre mineiros, costureiras, mulheres e crianças escravizadas. Isso faz parte da lógica mundial. Por isso temos que nos conscientizar: sem querer podemos estar fazendo o jogo do bandido com pinta de mocinhos.

Lembre-se: procure sempre ir além dos fatos.



Escrito por Edward de A. Campanário Neto

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